Faz muito tempo que não piso o palco. Provavelmente não o voltarei a pisar mais... E a verdade é que sinto falta. Sinto falta dos aplausos do público, do nervoso miudinho que sentia no estomago antes de entrar e que desaparecia assim que começava a dançar. Sinto falta de ensaiar até me dor o corpo todo.Sinto falta de dançar acompanhada ao piana e de me sentir invencivel.
Sinto falta daquelas roupas de princesa e do cheiro da maquilhagem. Era duro, sem duvida. Era duro repetir o mesmo exercicico vezes e vezes sem fim. Era duro passar horas em pontas e chegar ao fim sem sintir os dedos. Era duro abdicar de estar com os amigos, de sair, e de fazer as coisas que me apetecia..Mas a verdade é que no final tudo compensava.
Dizem que um bicho de palco será sempre um bicho de palco..talvez seja verdade. Dou comigo a pensar diversas vezes como seria se um dia voltasse a pegar nas sapatilhas...
Ontem foi noite de quinta. Qualquer estudante universitário que se preze sabe bem o que isso significa! Ontem foi noite de quinta e mesmo sendo férias acabou por ser um noitão.
Sabe bem estar com os amigos. sabem bem as jantaradas sem motivo algum. Sabe bem estar rodeada das pessoas que me mercaram para a vida. Sabe bem rir, dizer disparates, beber uns copos e ficar alegre. Sabe bem ir para a coluna do FRA e dançar, dançar e dançar....
Sabem bem as noites de quintas. Sabe bem partilhar bons momentos com amigos. Sabe bem sentir-me assim feliz. Realmente há pessoas que têm a capacidade de me fazer pura e simplesmente feliz.
Sabe bem criar estas recordações. Sabe bem pertencer a esta históra =)
Ela sempre fora bela e a boa relação com o espelho sempre foi evidente. Dona de 1.70 de curvas, de umas pernas torneadas que pareciam chegar ao pescoço, de uns cabelos cacheados negros e olhos imensamente verde e transparentes, era realmente daquelas mulheres que fazia parar o trânsito.
Ela sabia disso. Usava o seu poder como bem lhe apetecia, à hora que queria, para conseguir o que desejava. Bastava-lhe estalar os dedos e era ver cair a seus pés tudo o que desejava.
O corpo escultural era a sua arma de trabalho… O palco parecia adorá-la, era a sua casa, a sua vida! A cada pirueta, a cada grand-pliê o sorriso rasgava-se mais um pouco e ela ganhava anos de vida… A cada salto, a cada arasbeque ela voava…voava e parecia chegar mais perto do céu, mais perto do sítio onde as estrelas, como ela, pertencem…
Quando dançava iluminava-se de tal forma que ofuscava tudo o que se encontrava à sua volta. Em pouco tempo ascendeu a prima-bailarina numa importante companhia de bailado, e viu concretizado o seu sonho de menina. Em palco e fora dele tinha tudo aquilo com que sempre havia sonhado e era feliz!
Uma lágrima precipitou-se rosto abaixo enquanto contemplava a fotografia! Sim…ela sempre fora bela!
Fora… já não é mais! Perto dos quarenta viu o seu sonho cair por terra quando lhe apontaram o dedo e disseram que já tinha idade demais para ser bailarina, aliás chamaram-lhe velha… aos poucos viu-se ser ultrapassada por bailarinas mais jovens, mais bonitas, mais magras…. Foi tomada pelo medo de deixar de dançar e perdeu o gosto e alma com que o fazia…Deixou-se definhar e aos poucos foi enlouquecendo… perdeu a sua “casa”, perdeu o rumo!
Entrou em depressão profunda e acabou mesmo por ter que abandonar o palco e foi talvez aí, que verdadeiramente ela morreu!
Passaram meses, anos em que pura e simplesmente se isolou do mundo! Não saía, não falava... não vivia! Para ela dançar era a sua vida…se não dançava mais então não fazia sentido continuar a viver…
Os anos foram-se sucedendo e sua depressão foi-se arrastando cada vez para um nível mais profundo e ao chegar aos sessenta a demência já não permitia que vivesse sozinha e foi atirada para um lar.
Sim ela sempre fora bela… hoje não passava de um amontoado de ossos e peles encarquilhadas.
Outra lágrima escorregou … era dura a realidade, pelo menos nos escassos momentos em que realmente se apercebia dela, nos poucos momentos em que existia alguma lucidez na sua mente.
Um dia teve tudo, hoje apenas memórias, quando o seu cérebro lhe permite revive-las. Se um dia foi uma grande estrela hoje não passa da promessa daquilo que poderia ter ainda conseguido alcançar. Hoje não passa de uma velha atirada a um lar, a quem o Alzheimer e as depressões sucessivas roubaram tudo, incluindo a identidade. Hoje não passa de um nome chamado uma ou outra vez quando a tentam trazer de volta a realidade
Hoje é quinta. Bem aos olhos de qualquer pessoa, que não um estudante académico, sabe bem o que isso significa. É verdade que ainda não estamos em aulas, mas há que fazer a preparação para a época que ai vem..a altura de praxes não é de todo fácil.
Já tinha saudades destes jantares, combinados em cima do joelho e onde cada vez são mais pessoas acrescentadas à lista, aqueles jantares feitos no aconchego do lar, com massa com qualquer coisa a fazer de jantar e uma sangria caseira que nos faz ganhar asas que tanto ajudam a subir para a cidade.
Hoje é dia de me embonecar..de vestir os jeans apertadinhos, os decotes generosos e colocar os saltos vertiginosos. É dia de saída com amigos, dos copos e das doideiras, das sessões fotográficas… E dia de dançar até que os pés me doam e de chegar a casa já com o Sol a nascer..
Hoje vai ser uma grande noite..