Faz muito tempo que não piso o palco. Provavelmente não o voltarei a pisar mais... E a verdade é que sinto falta. Sinto falta dos aplausos do público, do nervoso miudinho que sentia no estomago antes de entrar e que desaparecia assim que começava a dançar. Sinto falta de ensaiar até me dor o corpo todo.Sinto falta de dançar acompanhada ao piana e de me sentir invencivel.
Sinto falta daquelas roupas de princesa e do cheiro da maquilhagem. Era duro, sem duvida. Era duro repetir o mesmo exercicico vezes e vezes sem fim. Era duro passar horas em pontas e chegar ao fim sem sintir os dedos. Era duro abdicar de estar com os amigos, de sair, e de fazer as coisas que me apetecia..Mas a verdade é que no final tudo compensava.
Dizem que um bicho de palco será sempre um bicho de palco..talvez seja verdade. Dou comigo a pensar diversas vezes como seria se um dia voltasse a pegar nas sapatilhas...
Ela sempre fora bela e a boa relação com o espelho sempre foi evidente. Dona de 1.70 de curvas, de umas pernas torneadas que pareciam chegar ao pescoço, de uns cabelos cacheados negros e olhos imensamente verde e transparentes, era realmente daquelas mulheres que fazia parar o trânsito.
Ela sabia disso. Usava o seu poder como bem lhe apetecia, à hora que queria, para conseguir o que desejava. Bastava-lhe estalar os dedos e era ver cair a seus pés tudo o que desejava.
O corpo escultural era a sua arma de trabalho… O palco parecia adorá-la, era a sua casa, a sua vida! A cada pirueta, a cada grand-pliê o sorriso rasgava-se mais um pouco e ela ganhava anos de vida… A cada salto, a cada arasbeque ela voava…voava e parecia chegar mais perto do céu, mais perto do sítio onde as estrelas, como ela, pertencem…
Quando dançava iluminava-se de tal forma que ofuscava tudo o que se encontrava à sua volta. Em pouco tempo ascendeu a prima-bailarina numa importante companhia de bailado, e viu concretizado o seu sonho de menina. Em palco e fora dele tinha tudo aquilo com que sempre havia sonhado e era feliz!
Uma lágrima precipitou-se rosto abaixo enquanto contemplava a fotografia! Sim…ela sempre fora bela!
Fora… já não é mais! Perto dos quarenta viu o seu sonho cair por terra quando lhe apontaram o dedo e disseram que já tinha idade demais para ser bailarina, aliás chamaram-lhe velha… aos poucos viu-se ser ultrapassada por bailarinas mais jovens, mais bonitas, mais magras…. Foi tomada pelo medo de deixar de dançar e perdeu o gosto e alma com que o fazia…Deixou-se definhar e aos poucos foi enlouquecendo… perdeu a sua “casa”, perdeu o rumo!
Entrou em depressão profunda e acabou mesmo por ter que abandonar o palco e foi talvez aí, que verdadeiramente ela morreu!
Passaram meses, anos em que pura e simplesmente se isolou do mundo! Não saía, não falava... não vivia! Para ela dançar era a sua vida…se não dançava mais então não fazia sentido continuar a viver…
Os anos foram-se sucedendo e sua depressão foi-se arrastando cada vez para um nível mais profundo e ao chegar aos sessenta a demência já não permitia que vivesse sozinha e foi atirada para um lar.
Sim ela sempre fora bela… hoje não passava de um amontoado de ossos e peles encarquilhadas.
Outra lágrima escorregou … era dura a realidade, pelo menos nos escassos momentos em que realmente se apercebia dela, nos poucos momentos em que existia alguma lucidez na sua mente.
Um dia teve tudo, hoje apenas memórias, quando o seu cérebro lhe permite revive-las. Se um dia foi uma grande estrela hoje não passa da promessa daquilo que poderia ter ainda conseguido alcançar. Hoje não passa de uma velha atirada a um lar, a quem o Alzheimer e as depressões sucessivas roubaram tudo, incluindo a identidade. Hoje não passa de um nome chamado uma ou outra vez quando a tentam trazer de volta a realidade
Há dias fui ver o Cisne Negro e sinceramente, na altura, ficou um bocadinho à quem daquilo que eu imaginava!
Mas depois debrucei-me na história e ai...ai percbei Sim a trama é estranha, mas acaba por transmitir uma mensagem de vida importante! Sim.. há que lutar pelos sonhos, porém não devemos deixar que a obcessão tome conta de nós, porque sinceramente ninguém é perfeito!
Poisss... o ser humano anda bastante longe da perfeição, embora muitas vezes se iluda e se ache o maior lá do sitio...
Sim...acabei por gostar do filme! Também porque aqueles vestidos, os momentos de dança, toda aquela beleza me transporta para momentos muito doces da minha vida. Doces promessas que ficaram lá atrás...
Sonhei é verdade...sonhei e por um bocadinho, um bocadinho apenas, deixei voltar a respirar a bailarina que há em mim...